segunda-feira, 11 de julho de 2011

ser simplesmente povo





Para o Professor João Medina, o “Zé Povinho” é “como uma sinopse da própria mentalidade do povo que o engendrou e nele, através dum (duplo) diminutivo tão revelador, se tornou nosso símbolo, totémico retomado por inúmeros cartoonistas ao longo da monarquia constitucional, da I República e, após a longa vigência da censura ditatorial, ressurrecto após o 25 de Abril, ainda que nos custe aceitar como nosso retrato verídico essa imagem deprimente e incomodamente labrega que nos espreita do fundo do nosso espelho colectivo, aquele rosto bronco de pascácio rural, de campónio mal vestido, barba rala, colete e chapéu preto de rústico, calças de fazenda ruim, mãos nos bolsos, riso alvar, espécie de resignado Sancho Pança sem um cavaleiro da Triste Figuras que o quixotize e lhe comunique um Ideal superior.” Foi nestes termos que o Professor João Medina caracterizou o “Zé Povinho” que no define na conferência com o título “Rafael Bordalo Pinheiro, Criador do Zé Povinho”, no âmbito da exposição que se encontra patente no Museu Bernardino Machado, em Vila Nova de Famalicão, dedicada à vida e à obra do caricaturista português.
Na sua “incursão transcendente”, propôs o Professor João Medina (numa sessão bastante concorrida de público) a explicação, a partir do momento em que a apareceu, o mito do “Zé Povinho” e do seu gesto simbólico numa perspectiva da antropologia social. Tais símbolos, numa linguagem gestual, são símbolos contextualizados psicologicamente, sociologicamente e historicamente. Símbolos históricos, digamos, com uma carga psicológica e sociológica perante um determinado momento social configurado historicamente. Sempre ao lado da história existiram os ditos “parvos” e os “idiotas”, os quais através de parvoíces revelam as verdades: é o caso do bobo medieval, do parvo vicentino ou o nosso “Zé Povinho”, que através de uma linguagem gestual e, neste caso, obscena, promove o estado de espírito e de sítio socialmente revelado. Aliás, o único gesto obsceno do “Zé Povinho” é o manguito, linguagem simbólica tipicamente portuguesa, sendo este o seu gesto mágico, servindo o mesmo gesto para quebrar algo nefasto, o gesto da dissuasão, interpretando-o o Professor João Medina numa perspectiva de edificação sexual masculina, apesar de possuir um mecanismo psicológico complexo que poderá ter várias interpretações. É o gesto do “Ora Toma!” Diz o “Zé Povinho” a Paiva Couceiro: “Ai querias a Monarquia? Ora Toma!” O “Zé Povinho” surgiu pelo lápis de Bordalo Pinheiro na “Lanterna Mágica” em 12 de Junho de 1875. Neste desenho, o que a simbologia caricatural carrega é, precisamente, o problema do fisco, o “Zé Povinho” vítima dos impostos. Por seu turno, o de 1887 é a caricatura face aos políticos e uma vez mais o fisco; o de 1899 é o “Zé Povinho” do desespero, desesperado face ao poder governamental, enquanto que o de 1910 é o da ilusão e da esperança. Citando Ramalho Ortigão, diz-nos o Professor João Medina que o “Zé Povinho” só poderá deixar de ser simplesmente “Zé Povinho”, quando passar a ser simplesmente povo, representando a verdadeira Democracia.
Em 1880 surge uma dialéctica estranha em Portugal, entre o “Camões” dos republicanos e o “Zé Povinho” de Bordalo Pinheiro: sem em “Camões” temos o emblema da Pátria, o totem por excelência literária e histórico-cultural do País, com o “Zé Povinho” deparamo-nos com o País Real. Camões é a transcendência (um Camões que já desde Almeida Garrett o que ria fazer a figura, a voz e o rosto da portugalidade, reatar o próprio feito para ser recordado pela geração futura, isto em 1825, numa altura em que já tinha visto o quadro, em Paris, de Domingos António Sequeira, entretanto desaparecido, e ouvido a música camoneana de Domingos Bom Tempo, renascendo a ideia com a regeneração, pretendendo salvaguardar o tempo da memória, com a inauguração da estátua em 1867, em Lisboa, de Vítor Bastos), o mito da Pátria feita palavra duradoura e eterna; por outro lado, temos o “Zé Povinho”, que é o português real, autêntico, o resignado, a vítima que não faz mal a ninguém, mas que é espezinhado, carregando as “espigas” e as “albardas” governamentais, representando tudo aquilo que ninguém quer, sem utopias, revoltando-se de vez em quando numa explosão de descontentamento. Está simplesmente há espera 136 anos para deixar de ser simplesmente “Zé Povinho” para passar a ser simplesmente povo.

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