domingo, 17 de abril de 2011

república em famalicão antónio luís gomes 1905

O Sr. Dr. António Luís Gomes realizou efectivamente, domingo último, a sua conferência em Vila Nova de Famalicão. / Presidiu à reunião o sr. Sousa Fernandes que, tomando a palavra, diz caber-lhe o gratíssimo dever de apresentar à assembleia o orador distinto que veio honrar-nos com a sua visita e vai deliciar-nos com a sua palavra; antes disso, porém, cabe-lhe também o dever de explicar a razão de ser daquela conferência que ali reunia tão selecto e numeroso auditório. / Explica porque razão de ordem superior se reorganizou a comissão municipal republicana de Famalicão, quebrando o interregno de que ali lutou durante 4 anos, em seguida ao ominoso «ultimatum» de 11 de Janeiro de 1890. / Refere-se aos membros que a compõem e mostra como, com quanto não tenham hábitos eleiçoeiros, dispõem cada um dos elementos de simpatia, estima pública e actividade para no momento preciso se fazerem rodear de numérica adesão de votos. / Diz, entretanto, que, pelo menos por agora, a comissão municipal republicana de Famalicão não cogita de pleitear triunfos na urna, e justifica esta atitude com as considerações que faz sobre o nosso vicioso regime eleitoral, em que o suborno, a prepotência e a fraude anulam todas as manifestações da soberania nacional. Intuitos revolucionários, no sentido violento da palavra, também, por agora, não os têm por agora os republicanos de Famalicão. E a justificar este propósito do momento cita uma frase que leu no último livro de João Chagas, onde se diz que, em regra, não são os revolucionários que fazem as revoluções, embora sejam eles que atiçam o incêndio que as produzem e em cujas chamas as mais das vezes eles próprios se queimam. / Exemplifica com numerosos factos da história para mostrar quanto procede esta asserção; mas tirando desses mesmos factos justas considerações, mostra logicamente que, se não são os revolucionários que fazem as revoluções, são, todavia, eles que as preparam. Preparam-nas pela propaganda; eis, portanto, o objectivo mais imediato a que o Partido Republicano de Famalicão visa. / Diz-se geralmente que a propaganda republicana está feita no nosso país. Não o está - diz o orador. A propaganda que a imprensa pode fazer, essa está em verdade e brilhantemente feita. Meditemos, porém, que em Portugal o jornal e o livro só podem ser lidos, pela parte que lê, de menos de 20% da nossa população que sabe ler, e que os 80% dos nossos restantes compatriotas não podem ser missionados por este meio. É preciso, pois, que onde não chega a palavra escrita, chegue, para substituí-la, a palavra falada. Tal é a razão de ser desta conferência cívica que o orador diz ser a primeira de uma série que, com diferentes oradores, se realizarão em Famalicão. / Faz em seguida o elogio do Sr. Dr. Luís Gomes, pondo em justo destaque o seu carácter, o seu talento e o seu fervor pela causa da democracia, terminando por dizer: «É um homem como o grande moralista inglês Samuel Smiles, queria que os homens fossem admirados pelo seu talento e respeitáveis pelo seu carácter. Tal é o orador que nos vem honrar. Vamos ouvi-lo, meus senhores.» / Aplausos do auditório coroam esta exposição do sr. Sousa Fernandes, tomando em seguida a palavra o Sr. Dr. Luís Gomes, que com aplausos novos é acolhido. Começa por um largo exórdio sobre a nossa situação política de momento, escalpelando o abuso prepotente dos que governam, a corrupção como administram, o cinismo com que nos exploram, a ausência de patriotismo com que arruinam e promovem a perda desta nacionalidade que a História inscreveu nos seus fastos com tão gloriosos relevos. Em confronto com estes crimes do alto põe em relevo a indiferença do povo, que pela ignorância de uns e pela subserviência de outros se deixa ir sem protesto até à fatal e ignominiosa queda. Friza o facto, sobejamente averiguado, da nossa desgraçada situação moral e material ser conhecida de todos os portugueses cultos, que por igual lhe conhecem a causa e se não coibam de, à surdina, o dizerem e lastimarem, sem, entretanto, todos terem a precisa coragem e independência de romperem com o regime que nos degrada e nos perde. Atribui isto ao sódido interesse particular, e assim se demonstra, como na moderna geração portuguesa vão perdidas todas as noções de civismo que fizeram o brasão de honta dos nossos antepassados. / A ideia da pátria parecde uma ideia morta entre nós - diz o orador; o sacrifício que ela reclama dos seus filhos é por essa gente preterido em benefício dos seus estômagos famintos. / Como salvar a pátria com semelhante corrente de ideias e sentimento ? - exclama o orador no meio de aplausos da assembleia. / Mostra em que princípio de justiça e moralidade se inspira o Partido Republicano, quais os seus feitos, qual o seu intuito na nova cruzada a que se porpõe. / Concorda com o sr. Sousa Fernandes em que a propaganda não está feita tão completa quanto é para desejá-la. É preciso fazê-la, correr de terra em terra, de aldeia em aldeia, se tanto for preciso, para contar ao povo à borda de que precipício a soligarquias monárquicas lhe colocaram a pátria, para ensinar-lhe o direito quetêm de intervir nesta debâcle, para, enfim, despertar-lhe o brio ingénito da sua nacionalidade. Como já mais de uma vez o tem afirmado, o orador entende que o povo português é capaz de recuperar as suas passadas energias e salvar-se ainda para a história; ponto é que se consiga ainda subtrai-lo ao atrofiamento do jesuitismo e ao despotismo da monarquia. / O orador aborda nesta altura uma magnifica lição da nossa História, que remonta ao período áureo das nossas descobertas marítimas, fazendo desde D. Manuel até nós uma análise tão justa quanto acerba e causticantes dos diferentes reis que, em nome dum direito absurdo, têm sido donos deste país e senhores dos portugueses. / Chega ao período do constitucionalismo e aí passa em detida revista os diversos partidos e seus homens. Detem-se com as mais veementes censuras sobre os processos corruptores de Rodrigo da Fonseca e Fontes Pereira de Melo, fulmina com eloquentes apóstrofes a traição feita ao povo pelos homens do pacto da Granja, envolve nos mesmo conceitos de crítica os regenradores e progressistas que aí estão a sucederem-se no poder com a regularidade mecânica dos alcatruzes de nóra. / Não crê nos Messias que dentro do regime se proponham a salvadores; e do Sr. João Franco, já pelo seu passado de régulo arbitrário e façanhudo engrandecedor do poder real, se pode ajuizar com dados seguros. / Com a falência política de Oliveira Martins, crê o orador que faliram para sempre todos os Messias que, dentro da monarquia, a si mesmo se proclamem como tais. / Por último, o Dr. Luís Gomes propõe-se a mostrar com algarismos o lastimoso estado da nossa fazenda pública. / Já por mais de uma vez e em diferentes pontos tenho repisado nesta demonstração - diz o orador - mas, meus senhores, nunca será demais fazê-la e com rigor matemático se pode demonstrar a nossa ruína, o desbarate das nossas riquezas roubadas ao suor do povo, o negro dos governos da monarquia nas dezenas de anos do período constitucional. / O desfilar dos algarismos apresentados pelo orador teve por vezes a sublinhá-los o murmúrio de surpresa e espanto do auditório. / Após mais duma hora dum discruso brilhante, repleto de eloquência e erudição, o Sr. Dr. Luís Gomes terminou em meio duma salva de palmas da assembleia, que por vezes, no decorrer da conferência, lhe dispensou calorosos aplausos. / Volta a falar o Sr. Sousa Fernandes. / Está cumprida a nossa missão, e muito bem - exclama. / Permitissem-lhe, porém, que antes de encerrar a sessão fizesse ali publicamente três agradecimentos: primeiro, aos seus conterrâneos por terem ali aparecido; com muito prazer via que entre eles havia alguns dos outros partidos, que não haviam tido dúvida em ir ali ouvir a palavra de um homem de bem, que é ao mesmo tempo um alto e grande espírito. O outro agradecimento era para o Dr. António Luís Gomes, pela alta e preciosa lição de história que acabava de fazer ali. Finalmente, o terceiro era para o Dr. Bernardino Machado, o homem de bem por excelência, o cidadão ilustre a todos os respeitos, que é uma glória muito legítima do nosso país, por ter cedido de tão boamente a sua casa para nela se realizar a conferência. Terminando bradaria: / - Viva Bernardino Machado! / Toda a assembleia secunda calorosamente este viva, e outros se erguem a Luís Gomes, ao Partido Republicano, à pátria, etc., etc.





  • "Reorganização Republicana. Conferencia do Dr. Luiz Gomes em Famalicão". In O Mundo. Lisboa, Ano 5, n.º 1560 (19 Jan. 1905), p. 1.

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